A primeira evidência da decadência da democracia caracterizou-se pela crise política de nossos dias, demarcada pelas quedas dos regimes antagonicamente totalitários nos últimos anos e pelos escândalos de corrupção e ignorância de detentores de cargos públicos em toda a esfera terrestre. Não sei precisar cronologicamente a ocorrência desses acontecimentos históricos, porém a recorrência de tais fenómenos sugere uma aproximação temporal de consequências matérias imediatas a toda estirpe humana.
Não é de estranhar que as crianças hodiernas adornem seus actos heroicos com lagartos e corujas, pois os Madibas e Ngangulas já não satisfazem as suas ansiedades de realização humana, como incisão empírica que possibilita a condição ontológica do próprio homem como vir-a-ser constante até a efusão de sangue.
Esta crise política é profunda, e resultou imediatamente de dois factores principais:
- O endeusamento do político, como salvador da pátria e responsável pelos desígnios da vida humana – nada mais patético!
- O fracasso do político no cumprimento dessa missão.
O primeiro factor determina o segundo. Pois, ao comprometer-se demasiadamente com questões fora de si e para si, o político enfraqueceu o Estado e ruiu a República, sendo que essa promessa fundamenta a necessidade de Estado como garante da preservação da espécie humana. Na perspectiva de Hobbes[1], por exemplo, somente o incumprimento dessa tarefa pode resultar na dissolução do Estado, único elemento social capaz de proteger o homem do regresso ao estado de natureza, pois, trata-se, segundo ele, de um estado de guerra.
Até aqui, é forçoso concluir que o Estado, como nação e ordem social natural é uma das maiores realizações humanas de que nos podemos orgulhar; o político, porém, como embaixador dessa organização humana, é a escória (…) que precisa ser re-engineered, para a sua própria manutenção e nossa salvação, como espécie.
Isso justifica-se pelo facto de os Estados pós-contemporâneos segregarem todo o processo social nacional e pós-nacional de meios de existência e tomada de decisão, culminando numa ditadura esfarrapada embrulhada de prenda, encenada pelo político, que, por sua vez, sente-se e apresenta-se a si mesmo acima de uma hierarquia de valores, cuja genealogia ignora, mas de que se vale para a subjugação de seus semelhantes.
Esse sentimento de potência, sem vontade nem glória, gerou indiferença para as crianças, ódio, para os jovens, medo, para os adultos, vergonha, para os velhos e, ressentimento, para os idos – que a sua cólera não se abata sobre as vossas cabeças!
Esta é a síntese teórica da crise política de nossos dias. Essa crise é profunda e arrasta consigo grandes transformações sociais, políticas, económicas, tecnológicas e, sem nenhum exagero, metafísicas, que escoltarão o homem para o próximo estágio da evolução humana, quer os políticos queiram, quer não – é transcendente! Os cientistas (episteme) e tecnocratas fartaram-se da sujeição aos caprichos dos filhos da luta! A Razão sempre salvou a humanidade do abismo apocalíptico – história que os diga, estamos no abismo apocalíptico!
A Crise Legislativa
A crise política, confrontada com várias crises: expansionista, ambiental, sanitária, humanitária e cognitiva – gerou uma crise legislativa caracterizada por um fosso cada vez maior entre as relações sociais (comerciais, laborais e familiares, virtuais) e a capacidade ou velocidade de regulamentação sobre essas matérias. Os conflitos decorrentes dessa fratura normativa estão efervescentes. (…)
Obs. Os desenvolvimentos sobre a crise legislativa e suas consequências sociais, psicológicas e antropológicas imediatas serão narradas em artigo próprio.
[1] HOBBES, Thomas apud BITTAR, Eduardo: Curso de filosofia política. 4ª ed. p. 175. 2011.
Autor: Domingos Bengo, 2020
Editor: Cefal, 2020
Fonte (Texto Integral): Bengo, O Vazio Legislativo em Tempos de Incerteza, Cefal, Luanda, 2020
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